segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Rosa, a Rainha sem Coroa



Dona Rosa me chamou atenção por causa de seus olhos, muito lindos. Bem vestidinha, envolta num agasalho de frio com umas estampas diferentes em creme e marrom, desses com botõezinhos na frente. Perguntei a ela onde comprou aquela roupa linda. E aí descobri que ela não havia comprado, nem escolhido. Estava usando a roupa que tinham dado para ela naquele lugar. Ela me revelou que não é permitido levar muita coisa pessoal para lá. Antes de ir, teve de se desapegar de tudo. Da casa onde viveu, dos objetos que escolheu, das pessoas, da liberdade de ir e vir. Os filhos a visitam sempre. Levam para passear no shopping... No lugar onde vive, não tem muita privacidade. Duas camas juntas, num quartinho improvisado por uma divisória metálica, acho que cinza. Umas poucas gavetas para guardar suas coisas.
Rosa tem 83 anos. Descendente de italianos. Pele branca, cabelos tingidos em tons de vermelho. Gestos de gente muito simples. Diz que brincava bastante quando era criança, mas não se lembra das brincadeiras. Nem de histórias. Brincava na rua. Lembra de uma mãe brava. E bota braveza nisso pois diz que ela e as irmãs corriam para o lado do pai, que era mais bonzinho, quando precisavam se proteger da mãe nos momentos  em que ela “encarnava a bruxa”. Que ninguém julgue essa mãe tão brava. Ela tinha várias filhas para cuidar, casa, marido e sabe-se o que lá mais. Mulheres dessa época geralmente costuravam a própria roupa. E as da família. Não havia muitos eletrodomésticos para ajudar. Enceradeira, lava roupas. Às vezes nem geladeira. Nem mesmo um sabão em pó. Shampoo não sei. TV. Anticoncepcionais. Injeção era pesada e de vidro. Divórcio era impensável. Mal visto. Não havia muitas escolhas. Vivia num tempo em que não se esperava outra coisa de uma mulher. Poucas saíam desse esquema. Seria braveza ou desespero ou preocupação para dar conta de tudo?
A vida de Rosa também não foi muito diferente. Fez apenas o curso primário. Depois, diz ela, a mãe a tirou da escola para trabalhar. Será que não foi decisão dos pais? Trabalhou em tecelagem e também numa firma de fazer caixa. Fazendo as contas, deve ter passado uns oito anos dando duro nos empregos.
Aos 19 anos casou-se e como o costume da época passou a ter vida de dona de casa. Tem quem chame as mulheres que trabalham em casa de “rainha do lar”. Até em documentos antigos se vê a expressão. Mas apenas assim: Do lar. Sem qualquer manto, sem qualquer coroação. E sem muita chance de abdicar ao cargo porque sem direito a salário não tinham como se sustentar. Acostumada a viver nos bastidores, Rosa nem quis aparecer para ouvir a própria história na tarde em que estivemos lá e tirar foto com manto e coroa. Ou talvez porque não quisesse mesmo que sua história fosse contada.
Ela conheceu seu marido no almoço que a cunhada ofereceu antes de se casar com o irmão dela. Ele era lindo! - lembra ela. Loiro. Olhos azuis. (E os filhos puxaram o pai. Me contaram que são lindos também.) Trabalhava em casa, como ourives. A primeira paixão de Rosa foi aos 13 anos. O rapaz tinha 21 anos, era sapateiro. Foi amor platônico porque ele não levou o amor dela a sério. E teve o José, que era muito novinho e o pai não deixou acontecer o namoro.
Momentos felizes? Seu marido ganhou 500 reis na loteria. Com esse dinheiro, que na época valia bastante, deu entrada numa casa. E passaram uma semana se divertindo em Santos.
Outras alegrias foram o nascimento das crianças. Seus filhos foram muito mimados. Ela não era brava, igual à mãe dela. Fazia a vontade das crianças. Até hoje: foi por causa da vontade deles ela cortou e pintou os cabelos. Por ela, deixava tudo branco.
O marido já faleceu. Mas antes disso foi morar com outra. Uma enfermeira. Então ela pôs aquela roupa e o batom e começou a sair para dançar com amigas. Samba, bolero. Até que foi um tempo bom, divertido. Mas veio o enfarte e a vida mudou novamente. Seus filhos não têm condições de cuidar dela em casa. Então ela foi para o asilo, diz que por vontade própria. Mas a gente intui, foi pelo amor pelos filhos, principalmente. Não quer perturbar a vida de ninguém.
Aqui passa o tempo vendo TV no quarto porque segundo ela, “não há nada interessante para fazer”. Ou que ela goste, porque me informei e o local promove várias atividades. Quando dá na telha, ela faz fuxico. Não, não é fofoca. É uma espécie de artesanato brasileiro feito com retalhinhos de pano, umas rodinhas de tecido que a gente franze com linha e depois costura com outros, inventando várias peças bonitinha. Deve ser gostoso de fazer.



Autora: Sueli Regina de Mello
Idosa: Rosa Scarilo

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